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Espaço

Comparações com a Terra revelam novos segredos de Marte

Isabel Gardenal - Jornal da Unicamp - 11/12/2009

Cientistas brasileiros estudam Marte comparando os planetas vermelho e azul
O projeto de planetologia comparada estuda ambientes análogos entre os planetas Terra e Marte.
[Imagem: NASA]

Planetologia comparada

Com patrocínio da NASA, cientistas brasileiros estão tentando desvendar novos segredos de Marte cruzando dados de áreas dos dois planetas que apresentam semelhanças geológicas.

Estar cada dia mais perto de Marte, sem precisar de uma nave espacial, é, para o geólogo Carlos Roberto de Souza Filho, professor do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp, uma das peculiaridades mais interessantes do seu trabalho no momento.

O docente, alunos do IG e uma numerosa equipe de pesquisadores nacionais e internacionais estão envolvidos, nos últimos anos, em um projeto de planetologia comparada que estuda ambientes análogos entre os planetas Terra e Marte, sob patrocínio da Nasa.

Além do mérito e impacto do trabalho, ele tem revelado várias descobertas científicas, ainda que "a distância". Foi um trabalho desse tipo que revelou que Marte pode ter tido um oceano em 30% de sua superfície.

Geologia planetária comparada

As pesquisas desenvolvidas pelo grupo são fundamentadas em dados e métodos de sensoriamento remoto (SR), um ramo da ciência que aborda a obtenção de informações sobre um determinado alvo através de um dispositivo qualquer (sensor), sem que haja contato direto com o fenômeno sob investigação.

Em Marte, o SR é utilizado para extração de informações sobre a composição mineralógica de solos e rochas presentes na superfície a partir de suas respostas espectrais - a capacidade de refletir ou absorver luz solar em diferentes comprimentos de onda do espectro eletromagnético.

Estas respostas são estudadas analogamente na Terra e vice-versa, na tentativa de compreender o ambiente de formação dos minerais e de mapear materiais favoráveis à preservação de bioassinaturas (fósseis) ou mesmo para a manutenção de alguma forma de vida.

Cientistas brasileiros estudam Marte comparando os planetas vermelho e azul
O geólogo Carlos Roberto de Souza Filho faz parte de uma equipe internacional, com apoio da NASA, que estuda Marte comparando as informações geológicas de Marte e da Terra.
[Imagem: Antônio Scarpinetti]

Lagos salinos e crateras

Os primeiros trabalhos foram conduzidos em uma área da Serra dos Carajás, no Pará, que reúne um conjunto de rochas muito antigas portadoras de microrganismos fossilizados, cujos registros aparecem em imagens de SR, o que potencializa sua detecção análoga na superfície de Marte, caso um conjunto similar de rochas exista naquele planeta.

Outros dois ambientes na Terra que têm sido abordados como análogos são lagos salinos e crateras de impacto de meteoritos. O professor explica que os lagos salinos compreendem situações extremas para a sustentação de vida atual na Terra, mas a do tipo microbiana é amplamente observada em lagos posicionados em áreas desérticas presentes em quase todos os continentes.

Várias evidências reveladas em Marte nos últimos anos apontam para a ocorrência desse tipo de ambiente durante a sua evolução, onde água líquida acumulada em amplas áreas no planeta teria evaporado, propiciando a deposição e o acúmulo de minerais hidratados na superfície.

Para estudar essa hipótese, Carlos Roberto e uma equipe da Nasa fizeram duas viagens à Oceaniaem, uma em 2008 e outra neste ano. Foram feitos levantamentos de campo e estudos de SR no Oeste da Austrália. Os primeiros resultados das duas expedições foram publicados em março de 2009 na revista Geochimica et Cosmochimica Acta, um dos periódicos de maior impacto científico na área de Geociências e Ciências Planetárias do mundo.

Localização de minerais

Conforme aponta o geólogo, "desde que uma família de novos sensores remotos foi colocada a bordo de satélites na órbita de Marte na última década, a superfície marciana passou a ser imageada constantemente e cada vez em maior detalhe".

Um desses sensores, o Omega (Visible and Infrared Mineralogical Mapping Spectrometer), foi lançado pela Agência Espacial Europeia (AEE) em 2003, a bordo da sonda espacial Mars Express. Esse sensor, do tipo hiperespectral, "enxerga' a luz solar refletida na superfície de Marte em centenas de bandas espectrais, viabilizando a identificação remota de vários minerais, tal como é feito na Terra.

Foi com base nos dados gerados por esse sensor, detalha o geólogo, que minerais formados na presença de água líquida foram identificados pela primeira vez fora da Terra. Essas determinações sustentaram uma divisão da história evolutiva de Marte, proposta pela equipe da AEE, com base nas diferenças mineralógicas verificadas ao redor do planeta, justamente considerando a presença de sais e argilas.

Derrubando teorias

Estudos sobre a origem desses minerais levaram o grupo a propor a hipótese de que, em algum momento, houve uma mudança em escala global no ambiente de Marte que passou de condições de alteração aquosa em condições "quasi-neutras" (o que favorece a deposição de argilas) no período denominado Noachiano para um sistema evaporítico ácido (o que favorece a deposição de sais) no período Hesperiano.

Essa hipótese defendida pelos pesquisadores europeus teve grande impacto e aceitação na comunidade internacional. Perdurou inquestionável por anos até que uma importante descoberta realizada pela equipe de Carlos Roberto foi publicada em outubro de 2009 na revista Geophysical Research Letters.

O artigo, liderado pela pesquisadora Alice Baldridge (pós-doutoranda da Nasa e orientanda do professor), revelou que os lagos salinos da Austrália têm como principal característica uma grande variação de pHs, entre ácido, neutro e alcalino, separada vertical e horizontalmente por poucos metros.

Os dados foram suficientes para demonstrar como essas condições distintas podem coexistir num mesmo ambiente. Carlos Roberto comenta que dois minerais marcam as diferenças ambientais importantes nos lagos australianos: sulfatos (sais) e filossilicatos (argilas). "Mais interessante: ambos são detectáveis a distância por sistemas de sensoriamento remoto a bordo de aviões e satélites", conta.

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Um dos inúmeros canais marcianos.
[Imagem: NASA/JPL/Arizona State University]

Futuras missões em Marte

Pela demonstração de que ambientes aquosos mais diversos e variáveis podem ter coexistido em Marte e de que existe uma associação espacial de argilas e sais naquele planeta, em analogia aos verificados na Terra, o trabalho foi considerado um dos Paper Highlights de 2009 pela American Geophysical Union (AGU), organização sem fins lucrativos de geofísicos.

"Descobrimos, a partir de observações no terreno e com base em imagens hiperespectrais obtidas a partir de aviões e satélites, que as argilas e sais presentes nos lagos salinos australianos são formados em ambientes extremamente dinâmicos e que sua deposição pode ocorrer de forma quase simultânea. Situações similares em Marte foram mapeadas por nós e por outros grupos de pesquisa, com base em dados gerados pelos robôs Spirit e Opportunity e a partir de satélites, mas a nossa interpretação original do sistema é o que muda tudo e isso terá um impacto significativo para as futuras missões em Marte", dimensiona o geólogo.

"Por exemplo, vista a comum associação de microorganismos com esses ambientes de lagos salinos ricos em argilas e sais na Terra, por que não podemos ter microrganismos marcianos equivalentes? Acredito também que com esse trabalho abrimos um leque de opções sobre locais onde novas sondas devem ser enviadas para Marte na próxima década."

Crateras de impacto de meteoritos

Crateras de impacto de meteoritos são ambientes que também têm sido explorados como análogos. O estudo sobre impactos na Terra e a analogia do processo ocorrido em outros planetas é um tema que passou a ocupar um espaço especial na "agenda de interesses planetários" de Carlos Roberto, desde que publicou seu primeiro artigo na revista Science, em maio de 2002, sobre o tema.

A partir dali, constituiu uma rede multidisciplinar que conta, além de alunos da Unicamp, com estudantes, pesquisadores e docentes da Stellenbosch University (África do Sul), do Imperial College (Inglaterra), do Laboratório de Propulsão a Jato, da Nasa, do Instituto Astronômico e Geofísico da Universidade de São Paulo (IAG-USP) e do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Essas pesquisas, visam não somente conhecer os processos e produtos de impacto na Terra, que têm implicações para a prospecção de minerais, óleo e gás, e aquíferos, mas também para estabelecer comparações com crateras de Marte e de outros planetas rochosos.

Entre outras consequências positivas, os impactos revelam o substrato rochoso de Marte, o qual se encontra muitas vezes encoberto por solo e poeira, impedindo o acesso à informação sobre sua composição mineralógica a partir de sensores remotamente situados. "Assim, a investigação das crateras na Terra pode subsidiar a interpretação sobre quais são as rochas transformadas por impacto e quais são pouco afetadas pelo choque e, portanto, são mais próximas da rocha primordial, que pode conter análogos terrestres mais interessantes", pontua o geólogo.

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Sonda Mars Reconnaissance Orbiter.
[Imagem: NASA]

Astronautas e robôs em Marte

Carlos Roberto sugere que tais avanços não devem parar mais. "Se nós, seres humanos, pretendemos estender nossa existência por vários outros milhares de anos, não há outra alternativa senão aquela da exploração espacial, de outros planetas terrestres. No caso de Marte, em algum momento nas próximas décadas, nós deveremos ter uma missão tripulada, com uma primeira equipe atingindo esse feito extraordinário. Torço para que tenhamos muitos geólogos envolvidos em todas as fases, quem sabe pessoal formado pela Unicamp".

Do ponto de vista dos custos e dos riscos, situa ele, é muito melhor enviar numerosas missões não-tripuladas à Marte, particularmente as que incluam a locação de robôs e veículos automatizados no terreno e aéreos não-tripulados de baixa altitude, para o conhecimento detalhado do planeta.

A exploração através de programas robóticos atuais e futuros proporcionará os conhecimentos fundamentais para exploração mais segura e previsível de Marte por humanos. O problema é que, mesmo Marte tendo uma dimensão cerca de 50% menor que a Terra, o planeta ainda assim é enorme.

Os robôs, mesmo das gerações futuras, dificilmente terão autonomia suficiente de energia e robustez para cobrir grandes extensões num terreno tão heterogêneo e mesmo inóspito. "Neste caso, será fundamental manter os trabalhos que nós e outros especialistas estamos fazendo quanto ao estudo de ambientes análogos Terra-Marte. Estes estudos nortearão o envio de missões robóticas futuras para locais relevantes que possam revelar cada vez mais evidências sobre a presença de água líquida passada e presente, e talvez algum tipo de vida naquele planeta", considera o professor.

Outras missões planetárias

Outros planetas do sistema solar também têm sido objeto de estudo por sistemas de sensoriamento remoto. Além de várias missões bem-sucedidas a Marte no último decênio, "também tivemos a primorosa missão Cassini-Huygens, patrocinada pela Nasa, para o planeta Saturno e sua lua Titan", observa Carlos Roberto.

A sonda Cassini, batizada em homenagem ao italiano Jean-Dominique Cassini (1625-1712), que descobriu quatro das dezenas de luas de Saturno: Jápeto (ou Iapetus), Reia (ou Rhea), Tétis (ou Tethys) e Dione, já completou mais de quatro anos em operação, gerando informações sem precedentes sobre aquele planeta, seus anéis e luas.

A missão Venus Express, da AEE, encontra-se em andamento no planeta homônimo, desde 2006. A missão Messenger tem como objetivo a investigação de Mercúrio - o satélite deverá entrar em órbita definitiva naquele planeta a partir de março de 2011. A exploração espacial, conclui ele, deu um grande salto de 2003 para cá, após um período grande de relativa estagnação.

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Mars Science Laboratory, um robô alimentado por energia nuclear que deverá ser lançado em 2011.
[Imagem: NASA]

Robôs móveis propiciam salto nas pesquisas

Em julho de 1997, a missão Mars Pathfinder obteve sucesso na colocação do pequeno jipe robótico Sojourner na superfície de Marte. Esta foi a primeira sonda terrestre que pousou em solo marciano, desde a era das sondas Vikings 1 e 2 (americanas) e das sondas Mars 2 e 3 (russas), na década de 70.

Embora tenha gerado uma coleção de imagens inéditas da região em torno do pouso, esse jipe robótico tinha uma possibilidade muito limitada de locomoção. Foi a partir de 2004, com a chegada dos jipes robóticos Spirit e Opportunity, que um salto substancial ocorreu nos estudos sobre Marte. A missão dos jipes robóticos era prevista para durar no máximo seis meses, mas eles continuam se locomovendo pela superfície marciana há seis anos.

Essa foi a primeira missão com robôs móveis, com possibilidade de locomoção a maiores distâncias. Ambos os jipes robóticos foram dotados de instrumentos para abrasão de materiais, análises microscópicas e espectroscópicas.

Quando os jipes robóticos chegaram a Marte, um deles, o Opportunity, caiu acidentalmente dentro de uma cratera. O que parecia um problema logo se revelou como um achado de sorte. Esta cratera, gerada pelo impacto de um meteorito, apresentava uma formação rochosa exposta no seu interior que continha numerosas evidências geológicas de que a rocha observada era de origem sedimentar e de que foi alterada superficialmente em ambiente evaporítico - ou seja, dois processos em que a profusão de água líquida é fundamental.

"Essa foi uma das principais descobertas dos últimos tempos em Ciências Planetárias", ratifica Carlos Roberto. "Com tantas situações favoráveis para o surgimento de algum tipo de vida em Marte, há uma boa possibilidade de que sejam encontrados indícios num futuro próximo".

Informações sobre Marte

Marte é um dos planetas mais próximos da Terra, em distância e constituição, compreendendo condições locais ainda "habitáveis". Considerando a melhor situação entre órbitas relativas (o que ocorre a cada 25 meses na Terra) e com um plano de uso mínimo de combustível, são necessários cerca de somente sete meses para atingir o planeta.

É um planeta coberto por sedimentos transportados pelo vento e possui uma fina atmosfera saturada em CO2. Algumas regiões são tão frias que o CO2 condensa-se sobre a superfície. Durante muito tempo, sustentou-se uma crença de que Marte seria um planeta "desértico e morto". Entretanto, Marte não foi e não é o que parece. Quase 40 anos de pesquisas baseadas em sensores imageadores e não-imageadores revelaram que o planeta pode ter sido similar a alguns ambientes conhecidos na Terra, com água líquida correndo em sua superfície.

Tudo indica que Marte teve uma história muito parecida com a Terra até determinado ponto de sua evolução geológica, incluindo a presença de amplos corpos d'água (talvez oceanos) em sua superfície. É um planeta rochoso com atmosfera, hidrosfera e clima. Apresenta registros de condições e materiais a partir dos quais a vida poderia ter surgido (ou ainda existir) naquele planeta, em analogia à Terra. Portanto, entender quando e o que aconteceu, para efetivamente explicar a sua distinta condição atual em relação à Terra, é um desafio que pode trazer repercussões relevantes para o futuro.

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A inóspita paisagem de Marte não consegue esconder um passado bem mais dinâmico.
[Imagem: NASA]

Futura exploração de Marte

O registro da presença passada de abundante água líquida no planeta foi destacado pela primeira vez a partir de imagens do satélite Mars Global Surveyor, que proporcionaram a observação de formas de relevo na superfície marciana, como grandes canais e ravinas, os quais somente poderiam ter sido formado pela erosão por fluxo de água. Com a chegada dos jipes robóticos Spirit e Opportunity ao solo marciano em 2004, evidências incontestáveis da presença de água líquida no passado de Marte foram reveladas, incluindo a detecção de diversos tipos de argila, sais e, mais recentemente, carbonatos. Na Terra, a operação desse universo de sensores a bordo de plataformas orbitais e voltados à observação do planeta é similar, compara Carlos Roberto. "Há uma diferença marcante, entretanto, nas aquisições a curta distância - aqui isso é feito por nós, geólogos, e não por robôs!"

Marte dá indícios de ter, como a Terra, cerca de 4,5 bilhões de anos, período quando se formou boa parte dos planetas do sistema solar. Na época da Guerra Fria, na corrida espacial entre americanos e russos, uma série de sondas de ambas as partes foram enviadas à Marte e pelo menos três delas pousaram efetivamente na sua superfície. Paralelamente, as missões Viking compreenderam imageadores orbitais que enviaram as primeiras imagens mais detalhadas de um planeta distante. Hoje, a tecnologia envolvida na exploração é muito maior. Além da maior densidade de programas em Marte, os jipes robóticos e sondas estáticas, como a Phoenix (atualmente em operação no polo norte de Marte), são verdadeiros laboratórios ambulantes. "Novidades são produzidas quase diariamente em Marte com tantas missões em andamento", comenta Carlos Roberto.

As próximas missões envolverão jipes robóticos e sondas ainda mais completas e complexas. O Mars Science Laboratory, um jipe robótico que deve iniciar suas operações em 2011, terá instrumentos específicos para a detecção de matéria orgânica na superfície marciana. As avaliações estão se tornando cada vez mais sofisticadas, revelando novos conhecimentos sobre Marte, sobre sua mineralogia e história evolutiva geológica, mas sem perder um dos objetivos principais de todas as missões: encontrar evidências de algum tipo de vida no planeta vermelho. Isso tem impacto em várias esferas, conforme Carlos Roberto. "Se conseguirmos comprovar a existência de vida em qualquer outro planeta, esta será a segunda evidência conhecida na história e isso definitivamente modificará a probabilidade da existência de vida no Universo. Por enquanto, nós e outros seres vivos que habitam a Terra somos a única evidência conhecida."

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